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Entrecruzamentos do olhar
Ana Carolina Campos
Entrecruzamentos do olhar
Ana Carolina Campos
Há vários modos de ver. Cada um, em particular, obtém uma forma de enxergar o que está a sua frente convidando à interpretação. Afinal de contas, é isso que fazemos a todo o momento, codificamos o que está diante de nós. O ser se faz na interpretação mediado pela consciência.
Um mesmo fenômeno pode ser observado através de espectros plurais. Uma única imagem pode suscitar diversas sensações, dependendo dos olhos que a enxergam. Quando se abrem os olhos, as experiências absorvidas são inúmeras, e a partir delas vamos construindo e reconstruindo nosso próprio mundo. Diante desse fato, podemos falar em horizontes de sentido. Camadas que se sobrepõem, num processo em que nos deparamos com o outro, com o diferente, que também detém seus próprios horizontes. Conseqüentemente, estes horizontes se chocam, havendo, então, uma fusão entre eles. Talvez tivéssemos também a liberdade de denominá-lo diálogo.
O movimento é circular. Parte de nós até o outro e sai do outro até nós, sem perder de vista também que este outro pode ser nós mesmos, e que, para que essa engrenagem funcione, há de se ter uma impulsão que podemos encontrar em nossas consciências. É ela que nos proporciona dar sentido às coisas, pois não há consciência por si só, há sim, sempre, consciência de algo. Trabalhando junto a ela estará a percepção do mundo que temos, o cenário por onde caminha nosso olhar.
E o que dizer sobre esse olhar que é solicitado quando estamos num museu ou em qualquer outro espaço expositivo apreciando uma obra de arte? Como será o direcionamento dele? O mediador torna-se um canal entre a cultura contextualizada do produtor da obra e do objeto de conhecimento: arte e fruidor, idealizando recortes e percursos, sendo também um criador, ou seja, um autor de um discurso. Em uma obra de arte, diferentes atos, episódios, acontecimentos mesclam-se e fundem-se numa unidade e, não obstante, não desaparecem nem perdem o seu próprio caráter. Numa conversação, há intercâmbios e fusões contínuas, contudo cada interlocutor não apenas mantém seu próprio caráter, como ainda o manifesta, denunciando-se mais claramente do que o desejaria.
Essa experiência de pensamento surge apenas quando uma conclusão se manifesta. Tal experiência, como na observação de uma tempestade, alcança sua culminância e decai, gradualmente, apresentando contínuo movimento de temas. Como uma pedra que é jogada num lago calmo, e seu mergulho proporciona círculos que se expandem pela película delicada da água. Se for alcançada uma conclusão, é a de um movimento de antecipação e de acumulação que por fim chega a completar-se. Uma conclusão não é uma coisa separada e independente, é a consumação de uma circulação. A ação e sua conseqüência precisam estar juntas na percepção. Essa relação é o que proporciona sentido.
Num espaço de exposição, é natural o público espontâneo ser o próprio diretor do seu percurso, ele elege por onde vai olhar. No caso do público que solicita um agendamento ou uma visita guiada, fica à mercê do trajeto definido pelo mediador(a). Quem é este senhor(a) responsável por direcionar o olhar ou até estimular aberturas de caminhos? Onde fica o papel de alguém que está numa passagem de fruição estética entre o espectador e a obra?
Para perceber, o espectador precisa criar sua própria experiência. E sua criação tem de incluir conexões comparáveis àquelas que o autor sentiu. O ambiente da mediação é um vácuo entre o que a exposição pretende apresentar e a possibilidade de fruição dos diversos públicos, criando assim um espaço de produção de sentido, desvelando, através do diálogo, as possibilidades de interpretação. Nesse exercício, o mediador “desenha” pontes entre a obra e o público, além de convidá-los a caminhar por elas, ou até sugerir qual delas escolher.
Na mitologia grega, Hermes era o responsável por levar as mensagens consigo do mundo dos deuses até o mundo dos mortais. Esta seria a função dele nesse reino de decodificações, a função de um tradutor. Tradutor que também leva consigo a designação de traidor. Nunca, realmente, conseguiremos elucidar plenamente o texto do compositor, tracejar a mesma experiência que ele desenhou para poder produzir sua obra. Quando traduzimos, paradoxalmente à nossa vontade de esclarecimento, estamos traindo.
Essas são as linguagens que recepcionamos do mundo. É dessa forma que, de antemão, tentamos clarificar os sinais que o permeiam. O mediador pode, sim, trair o autor, mas as possibilidades de fazê-lo são vastas, quando praticada dialogicamente, confunde-se também com a traição dos espectadores. Foge da questão da culpa, apesar de conhecermos o território escorregadio do discurso.
O confronto existente entre o objeto de contemplação e o observador revela não somente uma interpretação, mas uma identidade, pois nesse processo há também um confronto consigo mesmo, uma revelação do ser. O caminho delimitado pelo mediador suscita um desvelamento, por mais que o discurso seja diretivo, havendo abertura para o diálogo, certamente revelar-se-ão os sujeitos. No encontro provocativo entre a arte e o espectador, podemos ser instigados a vivenciar outras visões. Algo intrínseco nessa conversa pode gerar uma nova tomada de atitude diante da própria vida e faz parte de uma constante reconstrução dos sujeitos.
Nessa perspectiva, o sujeito é detentor de uma história, portanto seu modo de ver o mundo estará impregnado de um passado. O olho está “contaminado” com uma experiência, e sendo este observador detentor de uma visão mutável, participando de um processo fluido, as acomodações são efetuadas de acordo com as fusões de horizontes que o mesmo é provocado a fazer.
A transmissão da mensagem do artista para o espectador exige competência de ambos: daquele, para criar, e deste, para entender. Os especialistas em comunicação podem dizer a mesma coisa de outra maneira: o emissor e o receptor da mensagem devem valer-se do mesmo código, para que a mensagem seja comunicada. (GRINSPUM, 2000)
Há de haver espaço para a conversação. Um diálogo deve ser construído no processo da mediação, porém, para que esse episódio aconteça, faz-se necessário um movimento de via dupla. O receptor deve estar apto para a conversa, ou seja, aberto para ouvir e, a partir desse movimento, retrucar com seus pontos de vista. O mediador, por sua vez, deve perceber os caminhos que percorrem os diversos discursos e saber revidar, traçando assim um diálogo de percepções.
As interpretações e os discursos se sustentam no diálogo, sem ele não ocorre fusão de horizontes, sendo assim, não experienciamos e não criamos nossos próprios julgamentos. Os mediadores são todos Hermes, mensageiros da poesia, “cegonhas” de fruições estéticas.
No geral, em grande parte de nossas experiências, não nos ocupamos da conexão de um incidente com o que sucedeu antes ou com aquilo que há de suceder. É preciso estar presente na experiência. Saber que a culminância de um pensamento ou sensação teve um caminho a percorrer. A partir disso, obteremos uma experiência dotada de qualidade estética, desencadeada por esse habitante do “entre - espaço”, cujo desempenho é papel fundamental na cena da confabulação.
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Referências Bibliográficas
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 8ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, Bragança Paulista, SP: Editora São Francisco, 2007.
GRINSPUM, Denise. Educação para o Patrimônio: Museu de Arte e Escola. 2000. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.
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