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O impacto do ensino de arte nas ONGS
Lívia Marques Carvalho
Não resta dúvida que nas últimas décadas o número de Organizações Não-Governamentais – ONGs - vem se expandindo de maneira extraordinária no Brasil. Esta expansão é causada, sobretudo, pelo fato de o Estado não ter tido a capacidade de atender a enorme carência de prestação de serviços sociais à população, especialmente porque as desigualdades sociais se tornaram mais agudas a partir da década de 1980. As desigualdades sociais constituem por si sós um grave problema por ensejar a desintegração e a vulnerabilidade social, além de privar uma parcela expressiva de nossa população dos direitos mais elementares do ser humano como a saúde, habitação, segurança e lazer.
O entendimento de que não se pode contar unicamente com o Estado e o mercado para superar o aumento das demandas sociais fez surgir uma força nova – a participação da sociedade civil organizada, principalmente as ONGs. Estas instituições são autogovernadas, não têm fins lucrativos e se estruturam fora do aparato formal do Estado buscando favorecer, de maneira mais eficaz, as demandas sociais insatisfeitas e, ao mesmo tempo, provocar mudanças sociais. Pelo notável crescimento e pela influência que exercem na área social, estas instituições tornaram-se um setor específico de atividades humanas, identificado como Terceiro Setor por não se enquadrarem nem como atividade de mercado nem como estatal.
As atividades das ONGs não devem ser consideradas uma maneira de substituir ou aliviar tarefas que são da responsabilidade dos governos, mas uma tentativa de buscar alternativas mais eficazes para melhorar as condições de determinados grupos sociais. Meu interesse por este setor teve início em 1989, quando passei a desenvolver um trabalho de Extensão Universitária na Casa Pequeno Davi, uma ONG de João Pessoa, cujo objetivo é contribuir para a promoção dos direitos de crianças e adolescentes em situação de risco social por meio de ações de educação integral. Inicialmente, implantei uma oficina de artes visuais que era também um campo de treinamento para alunos extencionistas do curso de Educação Artística. Atualmente, além de ensinar, presto assessoria e faço parte da diretoria.
O trabalho nesta área motivou-me a pesquisar sobre o tema. Ao aprofundar meus conhecimentos sobre ONGs, dois fatores chamaram-me a atenção. O primeiro foi ter noção a extensão do número de ONGs no Brasil. Há registros oficiais de 250 mil ONGs, empregando mais de 2 milhões de pessoas. O segundo foi perceber que o ensino de arte é o principal componente das ações educativas das ONGs dessa natureza. O reconhecimento da importância que as atividades artísticas alcançam nos projetos políticos pedagógicos das ONGs e a escassez de estudos sobre o tema, estimularam-me a tomar esse assunto como objeto de minha tese de doutorado. Foram pesquisadas três ONGs: Casa Pequeno Davi de João Pessoa, Daruê Malungo de Recife e a Casa Renascer de Natal. Todas têm como público-alvo crianças e adolescentes em situação de pobreza.
A pesquisa confirmou que o ensino de arte nas ONGs é o eixo principal em torno do qual se desenvolvem todas as ações educativas e que as atividades artísticas provocam, de fato, mudanças significativas nas vidas dos meninos e meninas atendidos pelas instituições.
Os benefícios mais citados na pesquisa foram: fortalecimento da auto-estima positiva; expansão da capacidade cognitiva; desenvolvimento de habilidades e competências em determinadas modalidades artísticas, favorecimento de atitudes positivas, possibilidade de inserção no mercado de trabalho e a contribuição para efetivar os direitos que as crianças e adolescentes devem ter. O benefício enfatizado foi o fortalecimento da auto-estima.
Como e por que as transformações pessoais e sociais ocorrem
No espaço das ONGs a educação é caracterizada pela maneira diferenciada de trabalhar. Não há intenção de substituir a escola, mas de agir paralelamente a esta, estendendo suas ações educativas a dimensões que vão além das oferecidas nos sistemas escolares. Na educação formal, os conhecimentos transmitidos são sistematizados e organizados em uma determinada seqüência, muitas vezes distantes da realidade dos alunos; nas ONGs, os conteúdos são adaptados às demandas específicas de cada grupo. A transmissão do conhecimento acontece de maneira não obrigatória e não há mecanismo de reprovação no caso da não aprendizagem. O compromisso principal do ensino nas ONGs é com as questões consideradas importantes para determinados grupos. Por exemplo, a Daruê Malungo, que atende a uma comunidade de maioria negra, elegeu trabalhar com dança e música afro-brasileiras para transmitir uma herança e construir significados. Por sua vez, a Casa Renascer, que trabalha com meninas que entraram na prostituição infanto-juvenil ou estão em risco de seguir essa direção, enfatiza o ensino do teatro porque possibilita levar a público as temáticas discutidas nas oficinas através de apresentações de peças teatrais, contribuindo para ampliar as discussões e reflexões sobre o assunto.
Nas ONGs, as aulas de arte são em formato de oficina, com carga horária entre 4 e 6 horas semanais. Comumente, dispõem de salas apropriadas para cada modalidade de arte ensinada e o número de educandos em cada oficina é menor em comparação à escola formal. Um dos fatores que chama atenção no ensino nas ONGs é a existência de um grande empenho para que as atividades sejam ensinadas de maneira envolvente, prazerosa, de maneira que os educandos se mantenham atraídos e interessados.
Ensinar em ONGs é uma atividade relativamente recente e apresenta um elevado grau de complexidade e desafios. O público-alvo tem necessidades desmedidas e, por isso mesmo, demanda um trabalho pedagógico cuidadoso voltado para a reconstrução pessoal e social, fazendo recair sobre os educadores uma série de exigências. Para que o trabalho seja eficaz e dê bons resultados, os educadores devem possuir características específicas que vão além das qualidades técnico-profissionais. Necessitam ter habilidade na relação com o outro, empatia real com o público-alvo, potencial de afetividade equilibrado que gere respeito e ao mesmo tempo confiança, capacidade de agir com autoridade, mas sem autoritarismo, espírito democrático, mas sem permissividade. É indispensável que seja flexível e tenha a disposição contínua de analisar criticamente o processo educativo. Cobram-se, igualmente, um elevado grau de domínio técnico específico das linguagens artísticas. As crianças não querem brincar de ouvir música, querem tocar, compor, formar bandas. Não querem se entreter com jogos teatrais, querem representar, construir cenários, dançar, pintar, esculpir, querem dominar bem as técnicas, querem produzir com qualidade e é exatamente essa produção com qualidade que as leva a se sentirem capazes. Há ainda o fato de que alguns dos educandos vislumbram a possibilidade de virem a se ocupar profissionalmente dessas atividades. Portanto, os educadores devem do minar bem os elementos que constituem seu campo de ensino.
À medida que os educandos passam a dominar técnicas que lhes permitam manejar bem os elementos construtivos de cada arte, a expressar suas idéias com competência, tornam-se mais confiantes. A repetição sistemática de situações nas quais sejam bem sucedidos faz com que modifiquem a maneira de se autoperceberem. A autoestima é um aspecto bastante valorizado nas ONGs porque, de um modo geral, o público-alvo incorpora valores negativos e alimenta sobre si mesmo sentimento de desvalia. É a auto-confiança que vai estimular a buscar e a desejar superar as barreiras que impedem sua inclusão social.
Gostaria de ressaltar, ainda, que o processo da construção da auto-estima é afetado por fatores externos e internos. Experiências sistemáticas de sucesso, aquelas que não são fruto do acaso, mas que foram confirmadas pelo desenvolvimento de certas habilidades, tendem a elevar a noção de autoconceito e auto-estima da pessoa. Portanto, a auto-estima não se constrói apenas proporcionando oportunidade para os educandos se expressarem. Outro aspecto importante neste âmbito são as modalidades de arte ensinadas. Enquanto nas escolas institucionais as artes visuais são as mais presentes nas salas de aula, nas ONGs, as mais ensinadas são as que podem ser realizadas coletivamente, como teatro, música, dança. Há uma tendência de se utilizar as modalidades artísticas que favoreçam a montagem de apresentações que possam ser levadas a público.
A opção das ONGs por essas modalidades dá-se, entre outros motivos, pela elevada importância pedagógica que representam os trabalhos realizados coletivamente, pois um dos pressupostos básicos da educação não-formal é o de que a aprendizagem se dá por intermédio da prática social. Assim sendo, a educação não-formal tem sempre um caráter coletivo. A proposta pedagógica da maioria das ONGs é baseada nos princípios filosóficos de Paulo Freire que se apóiam no diálogo, na análise da prática, na construção do conhecimento a partir da realidade cultural dos educandos e os trabalhos realizados em grupo favorecem a aplicação desses pressupostos. Afora esses aspectos, as apresentações públicas são uma maneira de as ONGs "prestarem conta" aos familiares, à comunidade ou aos financiadores dos trabalhos desenvolvidos. Para os educandos, realizarem algo digno de ser levado a público e aplaudido faz com que se sintam mais seguros e aprovados. O reconhecimento social concorre para a auto-afirmação positiva.
No que tange as metodologias empregadas, há uma tendência a lançar mão da abordagem reconstrutivista. De acordo com essa perspectiva, pretende-se, por meio dos conhecimentos em arte, desenvolver os níveis de consciência crítica dos educandos favorecendo a integração individual e a transformação social. Entretanto, de uma maneira geral, o ensino de arte em ONGs não se fundamenta exclusivamente numa categoria de pressupostos, antes, muitas vezes é empregada uma relação de complementaridade entre as abordagens que podem, conforme a situação, expandir os limites de determinadas vertentes de ensino. Portanto, não se observa nas ONGs um enfoque dominante, embora a Proposta Triangular tenha sido a mais mencionada.
É importante reconhecer que o conjunto de ações das ONGs, inclusive com o atendimento de psicólogos e assistentes sociais, com a distribuição de refeições diárias e a exigência de que os meninos estejam matriculados numa escola regular, contribui para que a população atendida permaneça por mais tempo na escola. Deve-se levar em conta, ainda, que as atividades artísticas contribuem para o desenvolvimento de habilidades cognitivas e comportamentais, atributos que também favorecem ao aproveitamento escolar. A conquista de um nível de escolarização mais elevado representa uma possibilidade real para uma vida melhor, pois, historicamente, no Brasil a educação tem sido um meio de mobilidade social.
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Referências Bibliográficas
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CARVALHO, Lívia Marques. O ensino de arte em ONGs: tecendo a reconstrução pessoal
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Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
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O doutorado foi realizado na Escola de Comunicações e Arte da Universidade de São
Paulo, sob a orientação da professora Ana Mae Barbosa e concluído em 2005.