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[Relatos de experiência]
Arte&Cidadania: Diálogos infanto-juvenis nos projetos formativos do Recife
Meninos do Campus da UFPE – um projeto de inclusão social
Rosa Vasconcellos
O Projeto Meninos do Campus da UFPE nasceu, em abril de 1999, da constatação de um quadro problemático, no caso, a questão social da infância e adolescência abandonada ou, na melhor das situações, trabalhadora.
Detectamos que em torno dos edifícios do Campus da UFPE reunia-se um grande número de jovens e crianças carentes, às vezes se dedicando ao trabalho (lavando carros, vendendo cocadas etc), outras vezes, vagando, pedindo esmolas, ou mesmo praticando, ou aprendendo a praticar pequenos delitos, enfim, tentando viver.
Existindo no Centro de Artes e Comunicação da UFPE um Curso de Licenciatura em Educação Artística objetivando a formação de educadores, sentimo-nos na obrigação de nos posicionarmos diante desse quadro. Foi dessa maneira que o projeto surgiu, foi se constituindo, tomando vida, a partir da idéia apresentada pelo aluno da Disciplina Prática de Ensino em Artes Plástica 1, Manuel Romário Saldanha.
Cadastramos essas crianças, totalizando 83 (oitenta e três) entre crianças e jovens. Desses cadastros surgiram informações a respeito dessas crianças e adolescentes que vivem nas ruas, não porque são vadios ou porque são menores abandonados, tampouco por serem filhos de pais irresponsáveis, mas por procederem de famílias vitimadas pela exagerada disparidade social. Nesse sentido, é fundamental refletir sobre o perfil das famílias e sobre qualquer questão relacionada à problemática da infância e adolescência. Essas famílias são chefiadas pela mulher, visto que seu cônjuge é inconstante ou ausente. Coabitam juntos com filhos, netos, sobrinhos. Tem uma história de vida sofrida, sem perspectivas, buscando soluções práticas e de preferência já prontas e imediatas, visando suprir necessidades mais urgentes, como alimentação, habitação, saúde, educação, afeto.
No que diz respeito à escolaridade, só uma pequena porcentagem dos chefes de família já freqüentou a escola, não chegando a concluir o ensino fundamental. Estão desempregados e, na ausência da escolaridade, resta-lhes o mercado informal, realizando atividades como vender picolé, pipocas, catar papelão, biscates, tomar conta de carro. Essas atividades geram pequenas rendas que, somadas ao trabalho, à mendicância (ou pequenos furtos dos filhos), à ajuda de vizinhos e familiares, fazem com que sobrevivam. São comuns situações em que, para a criança ou o adolescente serem aceitos em casa, têm por obrigação trazer dinheiro.
Em síntese, e de forma genérica, foi nesse cenário que se situavam as crianças e os adolescentes com os quais desenvolvemos o Projeto Meninos do Campus da UFPE. Do cadastro dessas crianças e jovens, passamos à confecção de um esquema de atividades lúdicas, educativas e, porque não, profissionalizantes, com vistas a "atrair" tanto a nossa clientela, quanto obter sua adesão à nossa proposta.
Procuramos pensar o projeto a partir dos conceitos centrais de história e identidade individuais e culturais como forma de resgatarmos coletivamente o processo de uma socialização fragmentada pelo cotidiano e pelas políticas sócio-econômicas vigentes. Na construção da proposta, recorremos a 5 (cinco) pontos básicos, a saber: a utilização do conceito de cultura numa visão freiriana; a história da arte, como história da cultura na qual o grupo se insere sem desprezar o estudo e o conhecimento da cultura universal; a sintaxe dos elementos visuais e plásticos; a leitura de imagens e o fazer artístico resgatando a sua expressão gráfica individual; vinculando-os a uma dimensão utilitária e profissionalizante.
Ainda fazendo parte da dimensão metodológica trabalhamos conceitos e ações ligadas à cidadania, valores, atitudes, partindo sempre de determinados conteúdos. Naturalmente, esses conceitos foram adequados à capacidade de apreensão do grupo e foram construídos, também, a partir de suas experiências e vida cotidiana. Fazendo-nos conviver com crianças e jovens, descobrir, com eles e para eles, os caminhos de uma ação educacional que, partindo do estágio em que eles se encontravam, pudéssemos acrescer novos desafios, procurando criar um ambiente afetivo e físico, a cada dia, no qual eles fossem assumindo um novo espaço como um lugar possível de mobilizá-los para um novo relacionamento consigo mesmo, com o outro e com o mundo.
O comportamento agressivo, desconfiado, que inicialmente eles apresentaram, rompia todo o esquema organizado para recebê-los nos ateliês preparados para acontecerem as oficinas de arte. Durante as oficinas, crianças e jovens se agrediam mutuamente, gritavam umas com as outras, trocavam grosseiras e o desespero tomou conta de nós. Nos encontros destinados à reflexão, sentíamos no grupo o susto, o medo de todos. O que fazer? Como fazer?
Vivíamos o impacto entre tudo aquilo que imaginávamos ser necessidade e a realidade em si – vida gritante – dentro de cada participante do projeto. Foi esse o momento de confronto de dois mundos. Ao invés de ensinar as crianças e jovens, partimos para aprender com eles. Nas oficinas, o desperdício de material era grande, mas, por outro lado, adquirimos mais confiança, ficamos mais perto deles, da identidade, da cultura, de seus sonhos e, assim, construímos uma relação verdadeiramente humana, e tudo começou a se modificar as partir do RE-APRENDER, do RE-CONHECIMENTO da realidade.
Todo esse processo permitiu o crescimento de todo o grupo: coordenador, estagiário e alunos. Como atendemos a uma comunidade carente, ou socialmente excluída, estamos tentando implementar um modelo pedagógico alternativo ou complementar à escola pública, voltado para um ensino baseado em valores e atitudes, cidadania e criação de um profissional minimamente qualificado para atuar no mercado informal. Através do conceito de auto-sustentação e qualidade de vida, buscamos criar junto aos alunos atividades e mentalidades cotidianas que os habitem para uma nova prática política e profissional; a arte foi nesse momento a grande sacada que encontramos na tentativa de introduzir o aluno como agente social na luta por uma cidadania plena. O ensino da arte seriamente trabalhada surgiu como um campo fecundo na redução de quadros sociais problemáticos.
A sociedade, a cada dia, reduz aos jovens sua participação no mercado de trabalho, retardando, assim, a esses excluídos criar novas formas de participação e cidadania. A importância da Arte Educação, quando encarada como elemento de revitalização social através de suas práticas e produtos culturais, é muito grande e ainda pouco explorada. Com uma visão mais crítica da sociedade, com uma maior conexão com as necessidades e problemas da comunidade, poderia, assim, ser o novo horizonte de uma nova escola que precisa nascer imediatamente tendo a arte como eixo condutor do processo.
A arte, em sua função de criar uma cidadania estética, o que implica a erradicação do analfabetismo estético, resulta, pois, de toda uma visão de mundo, que é ao mesmo tempo filosófica, política, econômica, social e cultural. Dentro dessa perspectiva, acreditamos ter contribuído para a construção de um novo modelo político pedagógico. A atividade é sempre enriquecida com temas e módulos, que são trabalhados a partir de discussões e interesses expressados pelos alunos, em que são provocados debates relacionados com o entorno coletivo dos alunos na construção de sua identidade e no resgate de sua cidadania.
A discussão da problemática social foi contextualizada com a leitura de imagens; os conteúdos da arte foram introduzidos e vivenciados buscando expressividade individual dos jovens. Como resultado do nosso trabalho, observamos maior participação e envolvimento nas atividades propostas, crescimento do repertório gráfico-plástico, enriquecimento da expressão individual e social, melhoria da auto-estima, melhor relacionamento grupal e um produto cultural de qualidade, os cartões, produto confeccionado pelas crianças e jovens nas Oficinas de Papel Reciclado e Gravura Alternativa.
Ao final de nossas reflexões, não apresentamos conclusão, mas, tendo em vista que estamos inseridos num processo, apresentamos algumas considerações que julgamos relevantes. A viabilidade da proposta metodológica constata-se pelo fato de que as crianças e os jovens não são obrigados a participarem, mas não faltavam às oficinas e exigiam atividades, uma vez que conquistavam um olhar diferente, crítico, renovado e poético, e nossa proposta pedagógica foi se estruturando no sentido de desenvolver um novo projeto de vida, estimulando sonhos e construindo cidadania.
Observando o percurso, a construção desse caminho, em relação às oficinas de arte, foi muito árdua, mas, ao mesmo tempo, repleta de muitas descobertas, desafios, emoções, aprendizagens e, conseqüentemente, mudanças em todo o grupo envolvido no projeto: coordenador, estagiários, jovens e crianças. Dessa forma, sempre partimos do RE-APRENDENDO – RE-CONHECENDO, olhando cada vez mais esses sujeitos que aprendem a cada instante e nos ensinam a aprender. O Projeto Meninos do Campus teve uma função múltipla. Primeiramente, em laboratório de experimentação de ensino-aprendizagem em arte, do qual se beneficiaram os alunos da Prática de
Ensino em Artes Plásticas do Curso de Licenciatura em Educação Artística. Durante 7 (sete) anos de existência do Projeto, cerca de 78 alunos de Licenciatura em Artes Plásticas fizeram seu estágio curricular, sem contar com a participação de outras licenciaturas. Todos esses alunos se beneficiaram da experiência pedagógica que o Projeto ofereceu. Em igual importância, o Projeto funcionou como Extensão Universitária, beneficiando e dando oportunidade a uma parcela da camada da população – privada de recursos e oportunidades – a desenvolver suas potencialidades artísticas.
Mas, para transformar em ação, é preciso que haja livros, materiais, espaço e equipamento, porque profissionalizar não é só qualificar o professor, mas também possibilitar que ele seja inserido numa condição de desenvolvimento em que essa formação continuada reverta-se, em longo prazo, numa carreira. Não se forma só para ensinar melhor, mas também para que se possa viver melhor, como cidadão, como indivíduo e como profissional. E essa formação precisa ser reconhecida num plano de carreira, garantindo, junto com a formação, melhoria salarial e de condições de trabalho. Assim caminhou o Projeto Meninos do Campus da UFPE, resgatando sonhos, construindo cidadania numa aventura criadora.
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