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Arqueologias do presente
Bruna Rafaella
Na esteira de um mundo ambientalmente correto e preocupado com sua herança, surgiu um campo de atuação novo para os arqueólogos: a avaliação e o salvamento do patrimônio arqueológico ameaçado por grandes empreendimentos. (Arqueologia de contrato*)
Arqueologia do presente é o termo dado a toda produção plástica que possui em seu cerne o ato de extrair dos vestígios do meio urbano, sejam eles materiais e/ou humanos, base simbólica e criativa na elaboração de um conceito estético. Para realizar seu trabalho, o arqueólogo do presente lança mão de diversos procedimentos. Em campo, procura identificar e registrar com câmera fotográfica, filmadora, desenho, gravura, entre outros, aspectos que lhes mostram peculiares na cidade. Nesses sítios o artista/arqueólogo documenta estruturas e coleta objetos que pertencem ao cotidiano da sociedade em que está inserido demonstrando, primeiramente, um repertório de escolhas formais. Em seguida, inicia a fase de estudos e trabalhos plásticos em atelier (laboratório), onde parte para segunda etapa do processo criativo na elaboração da obra plástica, editando todo material registrado.
O que deve se manter ou ser descartado nesse meio infinito de possibilidades? Que tipo de ação pode tornar um objeto isento de sua função original (lixo), em peça para contemplação, entretenimento e fruição? Para o arqueólogo do presente todo material humano merece ser preservado, e pode ser eternizado em forma artística. As discussões sobre preservação de memória crescem, à medida que cresce a consciência dos homens em relação ao tempo atual. A cidade tem passado por um processo de transformação tão rápido e rígido, regido pela ditadura da segurança e do progresso econômico, que ao nos darmos conta nos sentimos indefesos e ao mesmo tempo imbuídos de uma obrigação social de transformação desse contexto opressor. Por vezes, outra força que nos faz mover é o fetiche de possuir um objeto raro, a vontade de colecionar, de manter uma parte desse contexto prestes a sucumbir.
Indo do gosto comum ao modismo, passando pela produção plástica de diversos artistas que trabalham com extrativismo urbano, percebemos ainda muito forte a herança do processo criativo gerados pelos experimentos dos surrealistas, dadaístas, com seu maior expoente no artista Marcel Duchamp. A diferença e contribuição que a nova geração vem a acrescentar na história da arte estão justamente na motivação dessas ações. Enquanto esses movimentos denunciavam e protestavam contra uma civilização que não conseguia evitar a guerra, a produção visual atual a que detenho minha reflexão busca o belo no meio de um turbilhão de elementos produzidos de forma desenfreada por uma sociedade de consumo que não pára de acumular informações. E dessa infinidade de objetos e informações sempre tenho a desconfortável sensação de obter o mínimo.
Sob essas reflexões elaborei o trabalho "Gravação". Trata-se de uma ação performática que gera uma série de gravuras, monotipias, que possuem como matriz, grades de ferro ornamentais de edificações nas cidades em desuso, encontradas, geralmente, em depósitos de ferro velho. Nessa performance, foi usada tinta na cor branca sobre os portões e impressas as grades sobre as roupas que uso durante a ação. O resultado plástico são os registros da performance em fotografias e vídeos, e monotipia com imagens das grades espalhadas sobre vestidos de forma aleatória.
Essa pesquisa plástica começou em 2005, de forma bastante experimental, onde por meio de um processo químico muito simples a ferrugem da matriz era passada para tecido. Outro desdobramento dessa pesquisa se dá na impressão de grades realizada em prédios da cidade. Nessa situação os trabalhos recebem título de acordo com o local onde foram feitos. Por exemplo, "Antiga Escola de Belas Artes, 2006" (atual edifício do Liceu de Artes e Ofício). Dessa forma, tomo o trabalho como uma espécie de catalogação, processo corriqueiro da arqueologia científica, gravando não apenas imagens ornamentais, mas também um dado local, contextualizado numa época específica.
Como muitas dessas configurações de grades de ferro não são mais industrializadas, venho através dessa pesquisa reivindicar a existência desse material, mesmo que de forma efêmera tal qual no caso das gravuras realizadas com ferrugem. Em outro plano de leitura, o trabalho pode nos parecer um documento dos costumes e da memória recifense, onde o ferro na construção de portões, janelas, óculos, pontes, sacadas, etc., sempre esteve lado a lado do processo de urbanização como elemento que presta igual valor a idéia de segurança e ornamentação. Em todos os níveis sociais, em diversas gerações, vemos portões de ferro pela cidade, somando beleza e cor, dos remendos de casas populares da periferia às edificações pomposas do governo.
Nesse processo, me mantenho no limiar que retira das memórias (pessoais e coletivas) as itinerâncias que compõe o diálogo entre a obra, o tempo, a ação, o sujeito e que nesse desenrolar de sentidos uma especulação acerca de uma arte pública abre mão para noções que norteiam muito mais um processo de busca pessoal. O arqueólogo do presente que, como tantas outras pessoas livres desse tipo de rotulação, passa por um processo de iniciação quando percebe uma ligação "mágica" entre a cidade (como organismo vivo), sua relação com esta e sua identidade. Nessa busca o sujeito percebe que vive dentro de si, sua fonte de inspiração e seu próprio inimigo, e fora dele o tempo.
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* Disponível em: ITAÚ CULTURAL. http://www.itaucultural.org.br/arqueologia/pt/oq_arqueologia/contrato00.htm. Acessado em 05/04/2008.
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