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Apontamentos sobre a minúcia na mediação em museus
Nicole Cosh
As ressignificações que se passam entre obra e público, em que me vejo ora mediadora, ora público dessa relação, deixam-me intrigada no que concerne ao tipo de experiência que a obra e a mediação suscitam e de que forma isso se dá. Abordarei estas e outras inquietações nos apontamentos que se seguem, buscando pensar sobre algumas práticas e indicar caminhos para uma reflexão sobre a atividade educativa em museus e galerias de arte.
Minúcia
No “Ensaio sobre o conhecimento aproximado”, Gaston Bachelard (2004) aborda a construção do conhecimento científico, especialmente no caso das ciências exatas. O autor apresenta uma ciência dinâmica,
na qual as retificações no campo do conhecimento são a prova e o objetivo dessa dinâmica. Portanto, a retificação faz a ciência viva. A cada retificação, realizada pelo mesmo autor ou por outrem, o conhecimento
adquire novos significados, as aproximações.
Nas aproximações se constitui a dinâmica do conhecimento:
À atenção e à reflexão da sensação primeira o autor coloca que são somados e retificados detalhes, minúcias que colaboram para uma maior objetividade da ciência.
Nas ciências exatas, Bachelard aponta a minúcia da relação pesquisador-fato. Para que a busca pelo fato ocorra, o autor cita Hamelin (ii), que afirma a necessidade de preparação do fato, através de sua busca pelo pesquisador. Isso se relaciona com o contato obra-público. Inicialmente, há o caminho até o museu, que pode ter sido ocasionado por um interesse pessoal da visita – por motivos vários – ou por uma programação específica de um grupo de turismo ou escolar. A partir daí, têm-se as sensações primeiras que a relação obra-público estabelece.
A estas, somam-se as referências que obra e público carregam consigo, permeadas por outras referências: mediação, museografia, ações propostas pelo educativo da instituição, memória do público, significados intrínsecos que a obra já traz.
No campo das ciências exatas, Bachelard aponta a minuciosidade das referências, o que também, a meu ver, pode ser visto no campo da arte. Obra e público relacionando-se e suas referências, que também se relacionam. A minúcia, então, “encontra-se como elemento afetivo o mero prazer da curiosidade”, portanto esse sentimento configura-se como “mínimo de afetividade para dar impulso à energia nervosa do conhecimento.” O autor conclui que “a minúcia anda junto com a complexidade das relações.”(iii)
Considerando a mediação (e outras ações que ocorrem em instituições culturais) um movimento de busca pela minuciosidade das relações obra-público, ela deve agir como forma de aguçar a curiosidade – e especialmente a afetividade – pela arte, para uma aproximação mais ampla entre ambos, arte e público. Some-se isto à complexidade das relações, pois públicos e obras já carregam significados em si. Dessa forma, a mediação que permeia a relação obra-público deve fomentar a minuciosidade, tanto como elemento promovedor da curiosidade como também – e fundamentalmente – tecendo a teia das referências que obra e público contêm em si.
Minúcia e Mediação
Gostaria de citar um exemplo de atividade que buscou ampliar as relações que o público tece sobre as obras, no caso, as exposições do Projeto Trajetórias(iv). À disposição dos visitantes, em pequenos cartões dispostos na galeria, havia as “Conexões para o Passeio”. Nos cartões havia questões concernentes à poética e à técnica das obras, formuladas a partir de pesquisas da coordenação, dos mediadores e de conversas com o artista. As Conexões eram um recurso complementar à visita, à disposição do público espontâneo das galerias, que na maior parte dos casos era composto por jovens e adultos.
Na exposição da artista catarinense Aline Dias, em que uma de suas obras consistiu em um minúsculo cubo contendo poeira acumulada do seu quarto, “Cubo de Poeira”, as Conexões para o Passeio provocaram no público reflexões acerca do tempo e de sua materialidade. “Como é possível guardar memórias em um lugar?” e “o tempo passa da mesma maneira para todas as pessoas?” foram alguns dos questionamentos feitos, como forma de ampliar e diversificar as vivências com a obra. Acerca da exposição do artista carioca Hugo Houayek, que abordava o suporte na pintura através de construções com lona e chassis (imagem acima), as Conexões para o Passeio promoveram embates entre a pintura consagrada historicamente e socialmente como tal e a obra do artista. “Além de pincéis e tintas, que outros materiais podemos usar para fazer uma pintura?” e “que relações podemos estabelecer entre cor e espaço?” foram questões que deixaram o público mais próximo das proposições do artista. Dessa forma, para um público espontâneo que eventualmente vem até a galeria, em muitos casos com pouco tempo para a visita, as questões das Conexões podem despertar outros aspectos da obra, e não apenas a sua visualidade, realizando outras experiências, além das estéticas, através das ressignificações.
Como se vê nessas experiências, utilizando simples cartões com perguntas, as ressignificações propostas pelas Conexões para o Passeio realizam um fluxo de minúcias, complementar à experiência estética já ocasionada pela obra. Relacionando este fluxo a Bachelard,
quando o objeto é reconhecido, devem-se fazer perguntas suplementares.Por mais familiar que seja um objeto, contém ainda ocasiões inesgotáveis de novas idéias, pois ele é sempre percebido num conhecimento mais ou menos aproximado.(v)
Dessa forma, nos encontros do público com o objeto do museu, por mais significados que este último tenha nos sistemas simbólicos nos quais se insere, sempre é passível de outras significações. A partir de reflexões propostas por diálogos promovidos pelo mediador, por atividades ou pelo próprio espaço museológico, o público, a meu ver, pode chegar às minúcias da obra, ocasionando assim as aproximações que creio serem necessárias para a experiência estética.
Um outro exemplo de aproximação através da minúcia é o Projeto Peça a Peça, no Instituto Ricardo Brennand – IRB . Essa atividade acontece mensalmente, desde 2006, e realiza oficinas, conversas entre mediadores e pesquisadores convidados, além de apresentaçõesculturais, a partir de uma obra do acervo. Neste caso, a minuciosidade configura-se nas diferentes vivências geradas com as proposições do projeto, que apresentam, além da obra, outros aspectos corporificados em atividades para o público.
Assim, no 16º Peça a Peça, cujo tema foi a obra “Lindóia”, realizamos diferentes atividades que podem ser consideradas como minúcias do quadro em questão. Trata-se de uma pintura a óleo realizada pelo português José Maria de Medeiros. Inspirado por um poema indigenista do século XIX de Basílio da Gama, o pintor executou a obra em 1882, e atualmente ela se encontra em exposição na Pinacoteca do IRB. Além da apreciação da pintura, houve uma representação do poema que inspirou o artista a realizá-la, no hall a instituição.
Após essa atividade, uma palestra ampliou as vivências do público com a obra, na qual Ruth Gouveia Gabino
e Eliana Barros abordaram, respectivamente, a pintura indigenista no século XIX e questões indígenas na atualidade, enfatizando a situação dos índios em Pernambuco. Para as crianças, a fruição da obra foi ampliada por uma oficina de cerâmica, realizada pelas arte-educadoras Cristiane Mabel e Flávia Costa. Finalizando a programação, o público pôde ver o documentário “Chicão Xucuru”.
Eliot Eisner (1999) aponta que, na relação com a arte, as pessoas fazem principalmente quatro coisas: “Elas vêem arte. Elas entendem o lugar da arte na cultura, através dos tempos. Elas fazem julgamentos sobre suas qualidades. Elas fazem arte.”(vii) A meu ver, todos esses movimentos baseiam-se na minuciosidade inerente a cada obra, bem como aos detalhes na relação obra-público, mediada pelas ações propostas pelas instituições. No caso do Peça a Peça, vê-se que nos encontros do público com o objeto do museu é sempre possível agregar minúcias às obras, ampliando assim seu campo de ressignificação e ocasionando outras experiências no público.
A minuciosidade na mediação configura-se, então, como um dos caminhos possíveis para a ressignificação das obras. Contudo, é inegável que nem sempre é possível promover todos os fazeres que Eisner propõe para o ensino de arte. Mas, se a minuciosidade de que tanto falamos está na relação público-obra, então uma conversa despretensiosa entre mediador e visitante, por exemplo, pode agregar outros significados aopúblico, promovendo então a experiência. Experiência aqui entendida conforme John Dewey (1980), pois entre espectador e arte,
sem um ato de recriação, o objeto não será entendido como obra de arte. O artista selecionou, simplificou, clarificou, abreviou e condensou de acordo com seu desejo. O espectador tem de percorrer tais operações de acordo com seu ponto de vista e seu próprio interesse. (...) Em ambos, há compreensão, em sua significação literal – isto é um ajuntar de minúcias e particularidades fisicamente dispersas em um todo experienciado. [grifo meu]
Portanto, creio que cabe ao mediador e às ações que a instituição promove esse ajuntamento de vivências – constituídas pelas minúcias e particularidades de cada objeto e situação de exibição – o qual provocará a experiência de que nos fala Dewey. O ajuntar reúne um fluxo de vivências que não necessariamente reclamam um fazer artístico, como propõe Eisner, mas, fundamentalmente, implicam novas significações da obra para o público. Como já disse, a conversa que o mediador pode ter com diferentes públicos pode levar à experiência, se esta conversa for pautada por um objetivo claro de promover uma reflexão pautada na minuciosidade. A partir dessas vivências e de suas próprias, as vivências se tornarão experiências estéticas.
Minúcia e Mediação: Aproximações
Chego, então, ao que me propus no início deste texto: refletir a minúcia na experiência estética. Dessa forma, que ela seja provocada pelo público, em sua busca pela arte; pelo mediador, em descontraídas – mas nem por isso ínfimas – conversas com o público; pelas instituições, através de suas ações. Assim, um fluxo de ressignificações entre obras e público provocará diferentes vivências para a experiência estética.
Mais do que uma prática complexa, proponho, finalmente, uma ação pautada na minúcia, no particular de cada público, de cada situação educativa no museu. Tempo e escuta do outro (em todas as partes envolvidas) talvez sejam a predisposição inicial para a experiência estética que nós, mediadores, poderemos provocar, quaisquer que sejam as condições que as instituições e o campo da arte forneçam.
Finalizo apontando um campo para retificações, a mediação. Posto que a construção de conhecimentos, por conseguinte de experiências, pode ser realizada através de aproximações, pela busca do detalhe, acada aproximação uma retificação ocorre. Dessa forma, como proposto por Bachelard, o que apresentei foi uma aproximação acerca da construção do conhecimento na relação público-obra. A partir daqui, espero que outras retificações sejam realizadas, através das reflexões de mediadores e ações educativas sobre sua prática, para novas aproximações das relações no campo da arte, em busca de promover diversificadas experiências estéticas.
__________
Referências
i Bachelard, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Tradução Estela dos
Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. p. 250.
ii Bachelard, Gaston. 2004, p. 248.
iii Bachelard, Gaston. 2004, p. 248 e 249.
iv Essa ação foi uma das atividades que promovi, junto a Neila Pontes, como coordenadora do Projeto Primeiro Olhar, da FUNDAJ, em 2006. Criado em 2000 por Cristiana Tejo, o projeto consiste em atividades educativas realizadas a partir das exposições do Trajetórias, que anualmente seleciona artistas contemporâneos para exposições nas galerias da FUNDAJ. Nesse projeto, criamos ações como: Passaporte para a Arte e Conexões para o Passeio, além dos jogos Cartões Relacionais e JogObjeto. Também incrementamos ações já existentes, como o Curso de Atualização em Arte Contemporânea para Professores, enriquecido com materiais educativos, propostas de atividades, imagens em transparência e textos da curadoria, nossos e dos mediadores. v Bachelard, Gaston. 2004, p. 262.
vi Essa é uma das atividades promovidas pela Ação Educativa e Cultural do IRB, com coordenação geral de Joana D´arc Souza Lima e coordenação pedagógica de Áurea Bezerra. Como arte-educadora da instituição, criei, junto a Albino Dantas, o Peça a Peça. A partir de então, outros mediadores e funcionários da instituição participam do projeto, bem como convidados de diversas áreas do conhecimento.
vii Eisner, Eliot. Estrutura e mágica no ensino da arte. IN: Barbosa, Ana Mae (org.). Arte-Educação: Leitura no subsolo. São Paulo: Cortez, 1999. p. 84.
viii Dewey, John. A Arte Como Experiência. Tradução Murilo Otávio R. P. Leme. 1980. p. 103-104.
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